MÓDULO 1- CONTEXTO DE PRODUÇÃO
I.
Leitura de crônicas.
A
cadeira do dentista
Fazia dois anos que não me sentava
numa cadeira de dentista. Não que meus dentes estivessem por todo esse tempo
sem reclamar um tratamento. Cheguei a marcar várias consultas, mas começava a
suar frio folheando velhas revistas na ante-sala e me escafedia antes de ser
atendido. Na única ocasião em que botei o pé no gabinete do odontólogo – tem
uns seis meses -, quando ele me informou o preço do serviço, a dor transferiu-se
do dente para o bolso.
- Não quero uma dentadura em ouro
com incrustações em rubis e esmeraldas – esclareci -, só preciso tratar o
canal.
- É esse o preço de um tratamento de
canal!
- Tem certeza? O senhor não estará
confundindo o meu canal com o do Panamá?
Adiei o tratamento. Tenho pavor de
dentista. O mundo avançou nos últimos 30 anos, mas a Odontologia permanece uma
atividade medieval. Para mim não faz diferença um “pau-de-arara” ou uma cadeira
de dentista: é tudo instrumento de
tortura.
Desta vez, porém, não tive como
escapar. Os dentes do lado esquerdo já tinham se transformado em meros
figurantes da boca. Ao estourar o pré-molar do lado direito, fiquei restrito à
linha de frente para mastigar maminhas e
picanhas. Experiência que poderia ter dado certo, caso tivesse algum jeito para
esquilo.
A enfermeira convocou-me na sala de
espera. Acompanhei-a, após o sinal-da-cruz, e entramos os dois no gabinete do
dentista, que, como personagem principal, só aparece depois do circo armado.
- Sente-se – disse ela, apontando a
cadeira.
- Sente-se a senhora – respondi com
educada reverência -, ainda sou do tempo em que os cavalheiros ofereciam seus
lugares às damas.
Minhas pernas tremiam. Ela tornou a
apontar para a cadeira.
- O Senhor é o paciente!
- Eu?? A senhora não quer
aproveitar? Fazer uma obturaçãozinha, limpeza de tártaro? Fique à vontade. Sou
muito paciente. Posso esperar aqui no
banquinho.
O dentista surgiu com aquele ar
triunfal de quem jamais teve cárie. Ah! Como adoraria vê-lo sentado na própria
cadeira extraindo um siso incluso! Mal me acomodei e ele já estava curvado
sobre a cadeira, empunhando dois miseráveis ferrinhos, louco para entrar em ação. Nem uma palavra de
estímulo ou reconforto. Foi logo ordenando:
- Abra a boca.
Tentei, mas a boca não obedeceu aos
meus comandos.
- Não vai doer nada!
- Todos dizem a mesma coisa – reagi.
– Não acredito mais em vocês!
- Abra a boca! – insistiu ele. Abri
a boca. Numa cadeira de dentista sinto-me tão frágil quanto um recruta diante
do sargento do batalhão.
Ele enfiou um monte de coisas na
minha boca e tocou o dente com um gancho.
- Ta doendo?
- Urgh argh hogli hugli.
Os dentistas são tipos curiosos.
Enchem a boca da gente de algodão, plástico, secadores, ferros e depois
desandam a fazer perguntas. Não sou daqueles que conseguem responder apenas
movendo a cabeça. Para mim, a dor tem nuances, gradações que vão além dos
limites de um sim-não.
- A anestesia vai impedir a dor –
disse ele, armado com uma seringa.
- E eu vou impedir a anestesia –
respondi duro segurando firme no seu pulso.
Ele fez pressão para alcançar minha
pobre gengiva. Permaneci segurando seu pulso. Ele apoiou o joelho no meu baixo
ventre. Continuei resistindo, em posição defensiva. Ele subiu em cima de mim.
Miserável! Gemi quase sem forças. Ele afastou a mão que agarrava seu pulso e
desceu com a seringa. Lembrei-me de
Indiana Jones e, num gesto rápido, desviei a cabeça. A agulha penetrou na
poltrona. Peguei o esguichador de água e lancei-lhe um jato no rosto. Ele voltou
com a seringa.
- Não pense que o senhor vai me
anestesiar como anestesia qualquer um – disse, dando-lhe um tapa na mão.
A seringa voou longe e escorregou
pelo assoalho. Corremos os dois para alcançá-la, caímos no chão, embolados,
esticando os braços para ver quem pegava a seringa. Tapei-lhe o rosto com meu
babador e cheguei antes. A situação se invertera: eu estava por cima.
- Agora sou eu quem dá as ordens –
vociferei, rangendo os dentes. – Abra a boca!
- Mas ... não há nada de errado com
meus dentes.
- A mim você não engana. Todo mundo
tem problemas dentários. Por que só você iria ficar de fora? Vamos, abra essa
boca!
- Não, não, não. Por favor –
implorou. – Morro de medo de anestesia.
Era o que eu suspeitava. É fácil ser
corajoso com a boca dos outros. Quero ver continuar dentista é na hora de abrir
a própria boca. Levantei-me, joguei a seringa para o lado e disse-lhe, cheio de
desprezo:
Você não passa de um paciente!
Carlos
Eduardo Novaes
(In:
A cadeira do dentista – Para gostar de ler 15. 8ª. Ed. São Paulo: Ática, 2009.
p.53-5.)
Professor, o objetivo desse módulo é fazer o aluno ter contato com
crônicas.
Pedir aos alunos que pesquisem crônicas e tragam para a aula. O
professor também deve trazer textos.
Agora
responda:
1.
Quem o escreveu?
Carlos Eduardo Novaes.
2.
Quem seriam os possíveis destinatários
deste texto?
Estudantes.
3.
Que fato deu origem ao texto que você
leu?
O medo que as pessoas têm do dentista.
4.
Como você caracterizaria esse fato?
Assinale:
( ) Um acontecimento de grande importância
para todos os leitores.
(
x ) Um fato real, corriqueiro, que ocorreu na
época em que o texto foi produzido.
( ) Um acontecimento trágico, catastrófico,
que mereceu destaque em todos os meios de comunicação.
5.
Qual é o suporte desta crônica?
Livro.
6) Agora retorne ao
texto “A bola nova” .
6.
Quem o escreveu?
Luis Fernando Veríssimo.
7.
Quem seriam os possíveis destinatários
daquele texto?
Leitores de jornais.
8.
Que fato deu origem ao texto?
As críticas em relação à cor da nova bola de futebol.
9.
Como você caracterizaria esse fato?
Assinale:
( ) Um acontecimento de grande importância
para todos os leitores.
(
x ) Um fato real, corriqueiro, que ocorreu na
época em que o texto foi produzido.
( ) Um acontecimento trágico, catastrófico,
que mereceu destaque em todos os meios de comunicação.
10. Qual
é o suporte daquela crônica?
Jornal Gazeta do Povo.
Professor, pedir aos
alunos que leiam as crônicas que pesquisaram e respondam novamente a essas
questões, com o objetivo de compreenderem de maneira significativa o contexto
de produção.
SALVO PELO FLAMENGO
Desde
garotinho que não sou Flamengo, mas tenho pelo clube da Gávea uma dívida séria, que torno pública neste escrito. Em
1956, passei uma semana em Estocolmo, hospedado em um hotel chamado Aston. Era
primavera, pelo menos teoricamente, havia um congresso internacional na cidade,
os hotéis estavam lotados, criando contratempos para turistas do interior ou
estrangeiros. A recepção do Aston, por exemplo, vivia sempre cheia de gente
implorando por um quarto ou discutindo a respeito de uma reserva feita por
telegrama ou telefone.
Estava
há dois ou três dias na cidade, quando me pediram para receber um brasileiro e
encaminhá-lo ao hotel, onde lhe fora reservado de fato um apartamento. Era uma
hora da madrugada quando entramos no hotel e me encaminhei até o empregado do
balcão, dando-lhe o nome do meu amigo e lembrando-lhe a reserva. O funcionário,
homem de uns sessenta anos e de uma honesta cara escandinava, tomou uma atitude
estranha e difusa, que a princípio me surpreendeu e ia acabando por me
indignar: ele não confirmava a existência da reserva, nem deixava de confirmar.
Como começasse a protestar, vi que seu rosto tomava uma expressão aflita; eu
entendendo cada vez menos. Quando passei a exigir o apartamento com alguma
energia, o homem, trêmulo, nervoso, pediu-me desculpas e trouxe afinal a ficha
de identificação. Foi aí que vi levantar-se da penumbra de uma saleta contígua
o gigante.
Se
o leitor conhece um homem forte, mas muito forte mesmo, imagine uma pessoa duas
vezes mais forte, e terá uma vaga ideia desse gigante que veio andando até nós,
botando ódio pelos olhos e espetacularmente bêbado. O monstro passou por mim
com desprezo e, agarrando o empregado pela gola do uniforme, entrou a sacudi-lo
e insultá-lo em sueco. Às vezes, éramos arrolados nessa invectiva, pois o
gigante nos apontava enquanto dizia coisas. O empregado, demonstrando possuir
um bom instinto de conservação, deixava-se sacolejar à vontade. Rosnando
assustadoramente, o ciclope foi sentar-se de novo na saleta, onde só então dei
pela presença de outro sujeito, também bêbado, mas sinistramente silencioso.
É
hoje, pensei. Sair do meu Brasilzinho tão bom, fazer uma viagem imensa, para
ser trucidado sem explicação por um bêbado. O fato de ser na Suécia, onde
arbitrários atos de violência não são comuns, ainda tornava mais absurdo, um
absurdo existencialista, o meu triste fim.
Indaguei
do empregado o que se passava. Ficou mudo. Insisti na pergunta, e ele,
sussurrando desamparadamente, explicou-me que o gigante estava a pensar:
primeiro, que não conseguira vaga no hotel por ser sueco e estar embriagado;
segundo, que nós conseguíramos por ser americanos, norte- americanos. Ora, se
meu amigo de fato era meio ruivo, seu jeitão era mineiro; quanto a mim, se
fosse americano, só poderia ser filho de portugueses. Por outro lado, o meu
inglês amarrado não deixava a menor dúvida sobre a questão de ser ou não ser
americano. Só mesmo um sueco bêbado em uma madrugada de neve e vento iria supor
que fôssemos americanos. Mas agora era o próprio gigante que bradava para nós
com sarcasmo e ira:
- American! American!
Fiquei
um pouco mais esperançoso, acreditando que ele falasse inglês, e disse-lhe,
exagerando minha alegria e meu orgulho por isso, que não éramos americanos
coisa nenhuma, éramos brasileiros.
Não
entendeu ou talvez pensou que estivéssemos covardemente a renegar a nossa
pátria, voltando a vociferar, em um esforço linguístico que contraía todos os
músculos de seu rosto:
-
American! Dollar! No like!
As
palavras em si significavam pouco, mas a maneira de exprimi-las era de um
eloquência que teria destruído Catilínia* muito mais depressa que os discursos
de Cícero. Durante alguns minutos mantivemos os dois uma polêmica oratória
nestes termos:
- American!
- No, Brazilian!
- American!
- Brazilian!
Essa versátil discussão ia levar-me ao abismo, quando de súbito me pareceu que a palavra “Brazilian” havia penetrado por fim em sua testa granítica. Descontraindo os músculos, o gigante me perguntou:
- Brazil?! No american? Brazil?
Não tinha certeza se ele estava me gozando, mas sua expressão era tão estranhamente deslumbrada e infantil, que afirmei cheio de entusiasmo:
- Yes, Brazil!
Ele se levantou, cambaleou, aproximou-se, apontou meu amigo:
- Brazil?
- Brazil, Brazil.
Veio chegando, sorrindo, em pleno estado de graça, e gritou com alma, como se saudasse o nascimento de um mundo novo:
- Flamengo!! Flamengo!!
Imediatamente, o gigante entrou em transe e começou a fazer problemáticas firulas com uma bola imaginária, mas dando a entender cabalmente o quanto ele admirava (admirava é pouco: o quanto ele amava) o malabarismo dos nossos jogadores. O gigante se desencantara, virando menino. A certa altura, depois de fazer um passe de letra, parou e confessou-me com um orgulho caloroso:
- I Flamengo! I Rubens!
Ele não era sueco, não era gigante, não era bêbado, não era um ex-campeão de hóquei (conforme soube depois), era Flamengo, era Rubens. Depois cutucou-me o peito, tomado de perigosa dúvida:
- You! Flamengo?
Que o Botafogo me perdoe, mas era um caso de vida ou de morte, e também gritei descaradamente:
- Flamengo! Yes! Flamengo! The greatest one!
- No, Brazilian!
- American!
- Brazilian!
Essa versátil discussão ia levar-me ao abismo, quando de súbito me pareceu que a palavra “Brazilian” havia penetrado por fim em sua testa granítica. Descontraindo os músculos, o gigante me perguntou:
- Brazil?! No american? Brazil?
Não tinha certeza se ele estava me gozando, mas sua expressão era tão estranhamente deslumbrada e infantil, que afirmei cheio de entusiasmo:
- Yes, Brazil!
Ele se levantou, cambaleou, aproximou-se, apontou meu amigo:
- Brazil?
- Brazil, Brazil.
Veio chegando, sorrindo, em pleno estado de graça, e gritou com alma, como se saudasse o nascimento de um mundo novo:
- Flamengo!! Flamengo!!
Imediatamente, o gigante entrou em transe e começou a fazer problemáticas firulas com uma bola imaginária, mas dando a entender cabalmente o quanto ele admirava (admirava é pouco: o quanto ele amava) o malabarismo dos nossos jogadores. O gigante se desencantara, virando menino. A certa altura, depois de fazer um passe de letra, parou e confessou-me com um orgulho caloroso:
- I Flamengo! I Rubens!
Ele não era sueco, não era gigante, não era bêbado, não era um ex-campeão de hóquei (conforme soube depois), era Flamengo, era Rubens. Depois cutucou-me o peito, tomado de perigosa dúvida:
- You! Flamengo?
Que o Botafogo me perdoe, mas era um caso de vida ou de morte, e também gritei descaradamente:
- Flamengo! Yes! Flamengo! The greatest one!
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CAMPOS,
Paulo Mendes. Salvo pelo Flamengo. In: SANTOS, Joaquim Ferreira dos.
As
cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro:Objetiva, 2007. p. 115-6.
MÓDULO 2 – ORGANIZAÇÃO TEXTUAL
1) A crônica é quase
sempre um texto curto, com poucas personagens, que se inicia quando os fatos
principais da narrativa estão por acontecer. Por essa razão, o tempo e o espaço
são limitados. Na crônica “A cadeira do dentista”:
a) Quais são as
personagens envolvidas na história? Comente sobre elas.
b) Onde acontecem os
fatos narrados?
c) Qual é o tempo de
duração desses fatos?
2) Na crônica, os fatos
podem ser narrados por um narrador-observador ou por um narrador-personagem.
Qual é o tipo de narrador na crônica lida? Justifique com um trecho do texto.
3) Partindo de notícias
veiculadas em jornais falados ou escritos ou em situações do dia-a-dia, o
cronista pode representá-las com humor, reflexão crítica e sensibilidade.
a) Existe uma relação
entre a situação vivida pelas personagens da crônica e a de nosso dia-a-dia?
Justifique.
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
b) Que objetivos o
autor tem em vista: criar humor e divertir ou levar o leitor a refletir
criticamente sobre a vida e os comportamentos humanos?
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
c) Esta crônica chama a
atenção do leitor? Justifique.
4) Observe a linguagem
empregada na crônica em estudo.
a) Os fatos são
narrados de forma pessoal, subjetiva de acordo com a visão do cronista, ou são
narrados de forma impessoal, objetiva?
b) Esta crônica é mais literária ou jornalística?
Por quê?
c) Que tipo de
variedade lingüística é adotado na crônica: a variedade padrão formal ou a variedade
padrão informal? Justifique sua resposta co um trecho do texto.
5) Troque idéias com
seus colegas de grupo e concluam: Quais são as características da crônica?
Pessoal.
6)
Baseando-se no texto Salvo pelo Flamengo,
preencha este quadro com os elementos da narrativa:
Professor (a): Leve seus alunos a construírem que a crônica não é
impessoal: o autor se coloca, opinando, posicionando-se diante dos fatos. São
seus sentimentos que predominam
7) A crônica, em geral,
é narrada em primeira pessoa, ou seja, o autor participa dos fatos como
personagem. Cite, no mínimo, três passagens do texto que comprovem que o foco
narrativo é em 1ª pessoa.
“Desde
garotinho que não sou Flamengo...”
“É hoje,
pensei.”
“Não tinha
certeza se ele estava me gozando...”
8) Sabendo que a
crônica fotografa um momento e a sensibilidade do cronista funciona como um
“filtro”, que imprime singularidade ao retrato do fato. Se você tivesse de
escolher um sentimento predominante nesta crônica, qual seria ele?
Pessoal.
9) Faça um resumo do
enredo da narrativa Salvo pelo Flamengo.